Matança de cães infectados com parasita gera polêmica em cidade de São Paulo

Um veículo oficial da prefeitura de Castilho, quase na divisa de SP com MS, anuncia que cães com leishmaniose precisam ser entregues para o CCZ (Centro de Controle de Zoonoses). A prática é recorrente durante 2022 e 2023. Todo morador da cidade sabe o motivo. Eutanásia.

É assim que a atual administração da cidade com 18 mil habitantes, e que fica a 644 km de São Paulo, atua no combate a leishmaniose. Cães são presos, testados e enviados direto para a morte.

Engana-se quem pensa que é uma política somente para cachorros abandonados. Diego, de 21 anos, revela sua história. “Fizeram exame no meu cachorro e me obrigaram a entregá-lo. Falaram que se alguém da rua ficasse doente a responsabilidade seria minha. Fiquei com medo e deixei levar o bichinho”, conta.

A prática é comum no município, que usa a eutanásia como carro-chefe no enfrentamento à doença. Um Inquérito Canino aconteceu em 2022 para descobrir quantos animais estariam contaminados.

Em março a administração revelou que, pelo menos 50% dos quatro mil cães do município estão contaminados. A prefeitura tenta recolher os dois mil cachorros para levá-los à CCZ a fim de praticar a eutanásia, mas nem todos os tutores permitem.

“Prefeitura de Castilho fazendo campanha pesada para sacrificar nossos pets. Basta! Ser ignorante pode ser uma opção individual. Ser desatualizado e desumano, já é falta de inteligência e de amo”, escreveu o vereador Adilson Santos.

À época, em publicação oficial, o Secretário de Saúde, Demilson Cordeiro da Silva, afirmou o seguinte. “O maior problema é que esse animal continua sendo um risco não apenas para os outros animais da casa, mas principalmente para quem mora na residência e também para os vizinhos, pois o mosquito pica um cão contaminado e sai voando, podendo depois picar toda a vizinhança”.

Um dos sintomas da leishmaniose em cães é o aparecimento de lesões na pele — Foto: BBC

Não é o que diz a ciência. Fábio Santos Nogueira, o doutor Leishmaniose, uma das maiores autoridades do país no assunto e que usa o Instagram para divulgar dicas que desmistificam a doença (@drleishmaniose) revelou à BBC Brasil que existe tratamento.

“Existem vários fármacos leishmanicidas para o tratamento da leishmaniose visceral, seja nas pessoas ou nos animais, sendo os mais utilizados os antimoniatos, anfotericina B e a miltefosina”.

O veterinário explica ainda que o cachorro, quando colocado em tratamento, pode deixar de ser um transmissor.

“A miltefosina está liberada para o uso nos cães, através de uma portaria interministerial de 2016. Temos também algumas drogas leishmaniostáticas e imunomoduladoras que podem ser utilizadas nos animais e com uma boa resposta clínica. Importante esclarecer que a leishmaniose é uma doença de difícil cura parasitológica estéril, seja nas pessoas ou nos animais. Com o tratamento, podemos obter a melhora clínica, redução da carga parasitária, controle da resposta imunológica e consequentemente o bloqueio da transmissão”, garante.

Sobre as mortes de animais, o doutor Fábio é taxativo. “A eutanásia como forma de controle da doença é uma página que já foi virada da nossa história. Ela surgiu em 1963 através de um decreto presidencial que visava o tratamento gratuito das pessoas infectadas, o controle do vetor e a eutanásia dos animais doentes. No entanto durante todos esses anos se mostrou ineficaz e custosa, com aumento do número de casos e disseminação para novas áreas”.

Por defender que seja abandonada a prática, o veterinário se envolveu em uma polêmica com a prefeitura de Castilho. Morador de Andradina, cidade vizinha, ele fez dura postagem em seu Instagram, comparando o modelo do município ao nazismo durante a Segunda Guerra Mundial.

A postagem, porém, não está mais disponível. O próprio veterinário explicou em um story divulgado à época, que apagou o post por pedido do próprio prefeito da cidade, Paulo Duarte Boaventura (MDB). O médico concordou em retirar as críticas porque soube que o político e sua família passaram a receber ameaças.

Questionada pela BBC Brasil sobre o caso e a prática de eutanásia, a prefeitura de Castilho não enviou resposta.

O vereador Adilson Santos protestou contra as políticas da cidade de Castilho — Foto: BBC

A prática não está restrita a uma única cidade do interior de São Paulo. Na Estância Turística de Pereira Barreto houve uma guerra entre prefeitura e uma Rádio Comunitária por conta da eutanásia.

O município de 25 mil habitantes praticou a eutanásia em 504 cachorros com leishmaniose em 2022, segundo dados oficiais da Secretaria Municipal de Saúde. “Questionamos se houve o cumprimento da lei e a Secretária se recusou a dar informações”, conta Naian Lucas Lopes, jornalista e apresentador de um jornal local na Rádio e que é dono de uma cachorrinha com leishmaniose.

Ele conta que desde o primeiro dia optou pelo tratamento e, agora, quatro meses depois, não há carga para a doença aparecer no resultado dos exames. “A cachorra recuperou completamente a saúde e eu gostaria que os 504 cães da cidade tivessem tido a mesma chance”, afirma comemorando.

Quem enfrentou essa estratégia foi Lindinalva(*). Protetora de animais, ela teve um cão, o Neguinho, diagnosticado com Leishmaniose. Embora funcionários do CCZ tenham determinado a eutanásia, ela não permitiu e decidiu cuidar do animal em casa e ele está sendo tratado.

Um caso que chocou a população ocorreu no mesmo período em que a Rádio Comunitária estava em pé de guerra com a prefeitura. Funcionários do CCZ (Centro de Controle de Zoonoses) invadiram uma residência sem a autorização da proprietária, Márcia(*).

A senhora de 60 anos estava fora de casa quando a filha autorizou a entrada de funcionários do CCZ e a realização de um exame no cachorro da família. Com o resultado positivo para leishmaniose, o cão foi levado para a sede do Centro de Zoonoses e sacrificado horas depois.

Márcia conta que ficou desesperada. “Eu corri até lá para pegar meu cachorro de volta e me disseram que ele já havia morrido. Eu entrei em pânico e denunciei para as Associações de Animais”, conta.

O parasita causador da leishmaniose visto do microscópio — Foto: BBC

Neste caso, a prefeitura não cumpriu a lei. Não houve tempo hábil para a contra-prova e muito menos para o acompanhamento, como determina a legislação. Procurada sobre o assunto, a administração não respondeu.

Existe uma legislação especifica que deve ser cumprida antes da eutanásia, é o que explica o advogado Marcos Ferreira. “A eutanásia está descrita na legislação, mas é preciso seguir uma série de exigências. É preciso um exame comprovando a doença, uma contra-prova para garanti-la. Também é preciso que haja um relatório individual do animal, com um documento assinado por uma Associação de Defesa de Animais, certificando que todas as etapas foram cumpridas. Além disso, é importante ter a autorização expressa do tutor de que ele foi informado da possibilidade do tratamento e optou pela eutanásia”, diz.

Marcos virou um porta-voz dos cachorros em Pereira Barreto. Ao saber do ocorrido, o advogado procurou o Ministério Público pedindo providências e acompanhamento do caso.

A denúncia está em fase de apreciação e a expectativa é que a Promotoria tome uma posição. “Encaminhamos um pedido de apuração ao MP, pedindo providências imediatas para que Pereira Barreto deixe de adotar a eutanásia como forma de enfrentamento da leishmaniose e que se crie mecanismos que protejam a vida animal”, garante.

Tanto a prefeitura de Castilho quanto a de Pereira Barreto deram respostas semelhantes aos questionamentos. Nos dois casos há a garantia de que a eutanásia não é a única prática para o combate a leishmaniose e que todas as medidas estão contidas nos protocolos do Ministério da Saúde e amparadas pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária.

Embora o SUS não considere a leishmaniose em cães caso de saúde pública, existe uma Portaria que autoriza a eutanásia, mas não a coloca como única opção.

A eutanásia é questionada no mundo todo há mais de dez anos. Um documento de 2010, publicado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), questiona a prática da e mostra a baixa resolutividade, dando o Brasil como exemplo “A triagem e o abate em massa de cães soropositivos não se mostraram uniformemente eficazes em programas de controle (por exemplo, no Brasil)”, diz o trecho.

No mesmo texto, a Organização Mundial de Saúde já mostrava que o tratamento parecia ser o melhor caminho. “Em vários países mediterrâneos, a eutanásia de cães domésticos infectados é reservada para casos especiais, como resistência a medicamentos, recaídas recorrentes ou situações epidemiológicas perigosas. A maioria dos veterinários prefere controlar a leishmaniose canina administrando tratamento antileishmania, enquanto observa atentamente as recaídas”.

Uma decisão do TRF-3, em 2015, considerou que a eutanásia é Inconstitucional. A 6ª turma do Tribunal Regional Federal do Mato Grosso do Sul, decidiu que o método não deveria ser utilizado em Campo Grande, capital do Estado.

“Não tem o menor sentido humanitário a má conduta do município em submeter a holocausto os cães acometidos de leishmaniose visceral, sem qualquer preocupação com a tentativa de tratar dos animais doentes e menos preocupação ainda com os laços afetivos que existem entre humanos e cães, pretendendo violar o domicílio dos cidadãos sem ordem judicial para, despoticamente, apreender os animais para matá-los”, publicou o relator do caso, o desembargador Johonsom di Salvo.

Cada vez mais a eutanásia passa a ser questionada judicialmente. Em 2016, na mesma Pereira Barreto, um casal foi à justiça para impedir a morte de Bolinha, seu pet, que estava com a leishmaniose.

O desembargador José Luiz Galvão de Almeida salvou o cão da morte certa. “Há ampla bibliografia científica documentando que o animal soropositivo para LVC, adequadamente tratado, sob supervisão de médico veterinário e protegido pelas medidas de prevenção, não apresenta protozoários na pele, não podendo, portanto, ser considerado infectante para o inseto transmissor, podendo conviver com seres humanos e outros animais. Assim, acolhe-se o pedido do apelante para evitar que o animal seja exterminado, devendo continuar sendo submetido a tratamento junto a médico veterinário, podendo o Poder Público acompanhar o tratamento e auxiliar o requerido, caso necessário, no combate da doença”, escreveu na sentença.

Desde 2019 existe medicamento autorizado pelo Ministério da Saúde para tratamento de cães com a doença: o milteforan. Ele é considerado eficaz e com alcance científico de 70% para cães doentes. Na prática, veterinários garantem que esse número ultrapassa os 90%. Isso significa dizer que, além do animal melhorar seus sintomas, ele não tem carga suficiente para que o parasita transmita a doença a humanos.

O tratamento, porém, não é barato. São 28 dias de medicação, com um custo em torno de R$ 850 apenas o remédio. Ao somar a consulta e os exames, não sai por menos de R$ 1,3 mil, algo fora da realidade de boa parte da população brasileira.

Os flebótomos são os transmissores da leishmaniose — Foto: BBC

Mas segundo o advogado Marcos Ferreira, cabe ao Poder Público providenciar o tratamento em caso de vulnerabilidade. “A lei estabelece que o Poder Público, incluindo aí as prefeituras, é responsável indireto por todo animal doméstico. Se um tutor não tem condição de arcar com as despesas de um tratamento, por exemplo, ele pode e deve exigir, até judicialmente, se o caso, que as despesas sejam arcadas pelo poder público”.

Muita gente defende a eutanásia por medo de que o cachorro transmita a doença para a família. Mas isso é um mito. Quem explica Fábio, o doutor Leishmaniose.

“A leishmaniose visceral é uma doença infecciosa, não contagiosa, causada por um protozoário do gênero Leishmania e que acomete cães, gatos, equinos e o ser humano. Os animais podem funcionar como reservatórios da doença servindo de fonte de alimentação para o vetor, também chamados de flebotomíneos e popularmente conhecidos por ‘mosquito palha’. Ao entardecer, as fêmeas dos flebotomíneos saem a procura de sangue para maturação dos seus ovos e quando encontra um cão infectado ingere o sangue com as formas parasitárias chamadas de amastigotas. Dentro do intestino do flebotomíneo essas formas amastigotas sofrem um processo chamado de metaciclogênese até se transformarem na forma infectante chamada de promastigota metacíclica e migrar para o aparelho bucal. Esse processo demora de 5 a 7 dias. Quando a fêmea realizar um novo repasto sanguíneo, durante a alimentação (homem ou nos animais), ela acaba regurgitando as formas parasitárias que entrarão no organismo e irão desencadear uma resposta imunológica que pode ser protetora ou não, sendo determinante para a doença. Importante salientar que nem todos os animais são infectantes e transmitem a doença”.

Neste cenário, a política pública defendida por veterinários é de que se trate o animal com a medicação, o uso de coleiras específicas e de repelentes. Somente no caso do pet não responder ao tratamento é que a eutanásia deveria ser adotada. Para o caso de saúde pública, o ideal é combater o mosquito Palha, transmissor da doença, evitando terrenos e quintais sujos, para acabar com os criadouros, exatamente como acontece com a dengue.

Em 2021, a Câmara dos Deputados realizou um debate sobre a Leishmaniose, a pedido do deputado federal Fred Costa (Patriotas-MG). “Na medida que nós optamos pela política pública do sacrifício, esses animais não estão tendo a oportunidade sequer de ter o tratamento, desde a opção mais barata até a opção mais complexa”, lamentou ele na ocasião, em conversa com a Agência Câmara.

A Lei 14.228/2021, assinada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), abriu espaço para o fim das mortes de cachorros com a doença. Isso porque, o artigo segundo determina que somente podem sofrer eutanásia animais com doenças incuráveis. Não é mais o caso da leishmaniose.

(*) Todas as histórias contadas são verídicas e aconteceram, mas os nomes usados são fictícios para preservar as identidades das vítimas.

Fonte: G1 – São José do Rio Preto e Araçatuba

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